quinta-feira, 14 de outubro de 2010

O Sonho de Maria

Meu sonho, no passado, era para o futuro. Nele havia uma casa branca, com janelas bem grandes pintadas de azul. A casa era tão grande que eu nem precisava chegar ao parapeito da janela para ver metade da terra e do céu que estavam à minha frente. A porta da sala ficava sempre aberta e nela começava um caminho que ia até o fim do mundo. Na frente da casa havia um jardim cercado de gerânios e atrás da casa tinha uma horta grande. Para as borboletas não havia divisas entre a casa, o jardim, a horta e o fim do mundo. Elas tinham asas coloridas como as flores.
 
Dentro da casa morava eu com minha família. Eu tinha quatro filhos: dois meninos e duas meninas, e um homem bom. Bom para todos e para mim também. A sala era bonita, nela meus filhos podiam brincar, depois de crescidos podiam namorar. E a gente proseava até não querer mais... Os quartos, onde meus filhos dormiam com cara de anjos, eram amplos, limpos e cheirosos; nem um pé de meia fora do lugar, só alguns brinquedos para me poupar de qualquer preocupação. No meu quarto, além dos móveis habituais e os lençóis de linho branco, havia uma cadeira de balanço linda e confortável que ganhei de presente do homem bom. Ele era zeloso comigo, me deu a cadeira para evitar dores nas costas quando eu tive que amamentar nosso primeiro filho; nela eu descansava meu corpo, aquietava minha mente, embalava o sono dos recém-nascidos e sonhava com a felicidade já adquirida. A dispensa, sempre cheia e organizada, era reservada; guardava de um tudo, inclusive umas varinhas de pescar e segredos de gente grande! A cozinha era quente e acolhedora, nela a gente sempre encontrava café pronto e qualquer um que chegasse, fosse dia ou noite, comia e bebia. Tínhamos uma mesa bem grande na varanda para acomodar grupos de ocasiões: família para rezar, comer e conversar; mulheres para costurar vestidos de festas, saborear biscoitos de polvilho, inventar novas receitas, sabotar a receita da vovó, fazer doces em tachos de cobre, confidenciar intimidades, dividir segredos e falar da vida dos outros; homens para tratar de negócios, comer lambaris fritos e outras delícias, tomar uma birita para driblar o frio e contar piadas indecentes. Na varanda da cozinha corria uma bica de água cristalina que vinha lá de cima das montanhas, de uma fonte que brotava entre duas pedras brancas. Na porta de entrada da varanda, nas horas vagas, dormia nosso cachorro (bom de caça) e mais dois gatos para dar conta dos ratos atrevidos. No terreiro da frente (próximo ao jardim), havia uma árvore frondosa e florida. Nos dias quentes de verão, ela abria sua saia de sombras para quem quisesse tirar uma pestana, jogar conversa fora, fazer carinho nos bichos, namorar ou ficar em silêncio, comungando a natureza. Seus galhos fortes sustentavam uma gangorra feita para gente grande e pequena, uma casinha de João de barro, um ninho de andorinhas. Às vezes, sua copa era usada como aeroporto para pousos emergentes ou como palco para shows de cantoria da passarada, nas tardes de outono. Depois da porteira que cercava o jardim, na colina em frente, ficava a capela construída para nosso santo de devoção. No sonho que morava em mim, havia escassez de lágrimas e excesso de gargalhadas. Abraços e beijos falavam mais que palavras. Mas, gritos também havia: gritos surpreendentes porque vovó e vovô chegaram com uma mala cheia de presentes e histórias, porque os pintinhos quebraram as cascas dos ovos e piavam no ninho, porque papai comprou mais um porquinho, porque a laranjeira amanheceu em flor, porque o cardápio de hoje é nosso prato preferido, porque alguém perdeu o primeiro dentinho... O homem bom e eu estávamos unidos até quando estávamos separados. Quando eu me ausentava, era só ele olhar para as meninas para ver minha presença espalhada nelas e eu, também via sua imagem espelhada nos movimentos, nas vozes e nas brincadeiras dos meninos. Nossa vida era calma, tranquila, saudável e completa. No meu sonho, eu era feliz!
Mas, meu sonho foi construído para ser vivido no futuro e quando cheguei lá, o futuro havia passado e o sonho, acabado. Melhor não ter pensado. Melhor não ter sonhado. Então, sem futuro e sem passado, só tive presentes

 

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