“Será que nem no
Céu a gente manda na gente?”
Para defender uma tese criada por mim mesma de que todas as pessoas têm um histórico antes de chegar
aqui na Terra e que pode ser contado de acordo com a vida que se vive, apresento lhes (do
ponto de vista cristão), uma história hipotética e patética baseada na vida da
Menina.
Antes de nascer, as pessoas vivem belas e folgadas
no Céu, umas desfrutando das coisas boas, outras ensinando o que consideram
importante para melhorar a essência do ser e outras aprendendo a ser gente,
para não chegar aqui dando vexame e fazendo Deus passar vergonha. Mas tem gente
que parece que tem espírito de porco e nem o Céu está bom para elas. Era o caso
da Menina. Ela achava que no Paraíso tinha regras demais, silêncio demais e
bondade demais! E desde que chegou lá, tinha vontade de virar tudo de cabeça para
baixo, mas não podia. Então, desde que passou a morar lá ficou sem ter o que
fazer, e isto a desmotivou. Conhecer o inferno podia até ser uma boa, pensava
ela, mas faltava coragem, visto que o Diabo vivia campeando almas e tinha fama
de gostar de carne fresca. Então, num belo dia, decidiu que ia voltar para a
Terra. Por aí já se pode ver que era uma besta! Se no Céu ela não podia fazer o
que queria, aqui é que ela ia conseguir? Pois bem, para voltar ela precisava de
autorização. Pelos trâmites legais, ia demorar uma eternidade tendo em conta
seu crescimento pessoal. Claro que, estando onde estava não ia poder contar com
a possibilidade de uma falsificação de documentos ou apadrinhamento político. Sem
plano A ou B, resolveu ir pelo caminho mais óbvio e também o único. Resolveu que ia procurar Deus
para conversar a respeito. Só tinha um problema, Deus não era uma figura
carimbada que aparecia toda vez que era invocado, procurado ou perseguido.
Estava sempre muito ocupado e para dar conta dos afazeres, levando em conta a
extensa geografia do universo, cada dia morava num lugar. Sem agenda prévia,
muitos nunca sabiam onde Ele estava. E deve ser por isto que alguns até duvidavam de Sua
existência. Ele tanto podia estar no norte, como no sul; morando num palácio ou
numa cabana. Na realidade, o que fazia o endereço de Deus ser reconhecido era o
símbolo da cruz, nada mais. Sempre que chegava num lugar, a primeira coisa que
fazia era fincar a cruz no chão (aqui para nós, tenho para mim que Ele também
não suportava rotina de espécie alguma). E a Menina, crua de tudo e sem a menor noção de direção,
enquanto Deus estava de um lado, ela estava do outro. Mas, se aqui na Terra,
quem tem padrinho não morre pagão, no Céu também não é diferente. A sorte é que
ela sempre teve algo a favor de si: a imaginação. Daí a concluir como encontrar
Deus foi um pulo! Não era segredo para ninguém que Deus batia o ponto nas horas
mais iluminadas do dia, em casa de Sua mãe. Nossa Senhora morava confortavelmente
num chalé de cristais azuis e em volta havia um jardim de flores pintadas a mão.
Além disso, a santa tomava banho de cheiro, chá de flores no inverno e suco de
melancia no verão, sempre à mesma hora do dia. Os anjos de fora colhiam as flores e os
de dentro preparavam o banho e serviam o chá ou o suco, conforme a época; depois
tocavam harpa enquanto Mãe e Filho conversavam. Embora Deus fosse adulto e dono
do nariz Dele, por medida de aproximação familiar, tinha como obrigação cumprir
o protocolo e Se apresentar a estas cerimônias quando estava livre. A Menina,
devota fiel, toda vez que se sentia perdida recorria aos poderes da Mãe. Assim
sendo, conhecia bem o chalé de cristal azul e resolveu que ia esperar o
Criador, todos os dias, na entrada do jardim. Tarefa difícil! Ele, sabendo de
antemão o que se passava com ela, quando a via, apressava os passos e passava
tão rápido que nem tomava conhecimento de sua presença. O querubim, acompanhante
de Deus, não entrava no chalé, ficava do lado de fora. Depois de algum tempo,
enquanto esperava, ficou intrigado com a presença contínua daquela lombriga esticada
na entrada do jardim e resolveu se aproximar para indagar sobre a situação. Ele,
como sentinela, tinha essa obrigação. Ela contou o que pretendia e ele resolveu
ajudá-la. Como não tinha poderes para resolver o assunto em questão, pediu a
ela para escrever uma carta especificando e justificando seu pedido e prometeu
que ia entregar em Mãos. Assim foi feito. Mas, muitos dias se passaram e nada
aconteceu. Não se soube como, Nossa Senhora ficou sabendo do ocorrido. E, como
sempre, se propôs a ajudar sem que a necessitada soubesse. E para facilitar, quando
a Menina estava muito distante de Deus, a santa, sem querer se meter
diretamente nos assuntos divinos, dizia a seu filho que estava precisando sair
um pouco, fazer caminhada para combater o sedentarismo e que por algum tempo preferia
visitá-Lo. E foi seguindo Nossa Senhora que a Menina sempre encontrava o
paradeiro de Deus. Nos dias que Ele saia de casa, ela ficava em frente a cruz,
esperando. Quando Ele chegava (porque Deus sempre volta para casa), lá estava
ela; parecia o cão de Ulisses, não arredava o pé. Ele, sem tempo para assuntos
banais, passava batido. Às vezes ela só sentia o vento da passagem resfriando sua
cara. Num dia desses, Nossa Senhora chegou e dois minutos depois, saiu. A
Menina estranhou porque não tinha dado tempo nem de tomar um gole de nada, o
que teria acontecido? Então ela tomou coragem e bateu na porta, quem abriu foi
o mesmo querubim que ficou de entregar a carta. Ele disse que, de sua parte, tudo
foi feito conforme prometera. Ela ouviu e insistiu para falar pessoalmente com o Patrão dele. Mas
Deus não se encontrava, teve que atender um chamado de urgência para resolver
uma pinimba na Terra, (disciplinar o advogado do diabo). E assim o tempo foi
passando. Mas, um dia, devido à insistência, a teimosa decidiu tomar uma
atitude mais drástica e quando viu que Deus estava Se aproximando, pulou na
frente Dele. Naquele dia Deus estava de saco cheio e quando olhou para ela,
parada ali na sua frente que nem um dois de paus, teve que parar também. Muda
de tanto medo, sua voz não saia. Percebendo a situação embaraçosa, Deus se
apoiou no cajado e ficou serenamente esperando. E nada. Então, a providência
divina adiantou os fatos: Ele perguntou o que ela queria e ela respondeu. Deus
até teve vontade de dar umas cajadadas nela, mas como Pai Supremo sabia que não
ficava bem, então respirou fundo, contou até três, juntou o resto de paciência
que ainda tinha e disse: “Filha, você não pode ir agora, ainda está no jardim
de infância, tem que aprender a ser gente primeiro. Quando chegar a hora, você
vai... Boa noite e até daqui a muito tempo”. Ele virou as costas e ela foi
atrás tentando argumentar. Dizia que não aguentava mais aquela monotonia, que
todo dia era a mesma coisa, que nada mudava, etc, etc... Mesmo estando Deus
cansado, com fome, com sede e sono, fez das tripas o coração para dar atenção:
“Olha, você viu o que aconteceu da última vez, você chegou aqui antes do tempo
combinado e isso é grave! Não seja precipitada, não vai por tudo a perder
agora.” Mas, ela continuou insistindo. Quando viu que Deus não cedia, apelou:
“Se o Senhor não autorizar, eu vou pular lá embaixo, por minha conta!” Aí Deus
ficou furioso! “Ah, é? Você está pensando o quê? Que essa passagem virou
bueiro, que qualquer animal sobe e desse na hora que quer? Pois se enganou meu
bem, seja de lá para cá ou daqui para lá, quem manda no pedaço sou Eu! Mas,
tudo bem, você que ir? Então vá! Mas, não chegue aqui antes do tempo. E nunca!
Eu disse nunca abra a boca para reclamar de nada. Depois não diga que Eu não te
avisei, ouviu?”. Dito isto, pá! Sentou o pé na bunda dela. E foi assim que a esperta caiu
nessa esparrela. Quando chegou aqui, teve tanto medo que passou onze dias sem
fazer xixi. Do livro: Um cheiro de flor.